Aula afinada
Estudar o conteúdo de canções populares pode ajudar na compreensão do que ocorria no Brasil em várias épocas
Romney Lima
Quando quatro professores apaixonados por samba pegaram seus instrumentos e criaram o projeto História Através da Música, em 2001, eles tinham muito mais coisas em mente do que apresentar canções aos seus alunos. Estimular debates sobre a atualidade das letras, as realidades históricas abordadas e a biografia dos compositores certamente dinamizaria as aulas de História do Brasil nas escolas do Rio de Janeiro. Ainda mais com o auxílio luxuoso das composições de mestres como Cartola, Gonzaguinha, Chico Buarque, Aldir Blanc, Geraldo Pereira, Noel Rosa e Silas de Oliveira.As diversas pesquisas na área provam que centenas de compositores se preocuparam em retratar o cotidiano da época em que viveram ou fatos históricos. Dessa forma, a música se transforma em uma ferramenta de aprendizado muito poderosa e um grande auxílio para os professores. Por isso, os resultados do projeto não demoraram a aparecer. O que os alunos, inicialmente, consideravam “músicas de gente velha” passou a fazer parte da trilha sonora de seu cotidiano. Muitos trocavam ideias com os pais sobre a época das composições, os estilos musicais e alguns autores quase esquecidos pela memória musical brasileira. Um ex-aluno, por exemplo, ouviu algumas músicas de Cartola no projeto e passou a conhecer toda a sua discografia. Este interesse se estendeu para a Internet, onde vários desses adolescentes começaram a baixar músicas de discos raros. A experiência bem-sucedida em sala de aula pouco a pouco foi se ampliando e começou a atingir um público mais variado a partir de 2006, quando ganhou novos espaços, como teatros, museus e centros culturais.As apresentações dos quatro professores passaram a ter ares de show-aula logo que três músicos – que já tocavam em rodas de samba e choro da cidade do Rio de Janeiro –, um ator e um diretor artístico se juntaram ao grupo com o nítido intuito de melhorar a qualidade musical do trabalho. Esse novo formato aliou a música e a História a outras linguagens, como o teatro e a literatura. Além disso, o uso de imagens – como fotografias de época, charges e pinturas históricas – ajudou a enriquecer os debates.Com base nesse modelo, foram criados espetáculos temáticos relacionados a datas importantes e a aspectos mais amplos da História do Brasil. No centenário de nascimento do compositor e jornalista Almirante (Henrique Foréis Domingues, 1908-1980), em 2008, por exemplo, foi apresentado o show-aula “Rádio Nacional – uma homenagem ao Almirante” na abertura de um Simpósio Internacional de Contadores de História, realizado no Sesc de Copacabana. O ator fez o papel de Almirante, enquanto os professores e músicos contaram a história do rádio no Brasil.Englobando um período que ia das primeiras transmissões radiofônicas, no início do século XX, até o auge da Rádio Nacional, nas décadas de 1940 e 1950, a apresentação incluía a execução de jingles da época – como os dos sabonetes Eucalol e Lifebuoy – e a narração de fatos curiosos. Como a história em que Noel Rosa – um dos maiores ídolos de Almirante – era contrarregra do programa “Curiosidades musicais”, mas não em todas as transmissões: só quando conseguia chegar à emissora na hora certa. Outro destaque no show-aula foi o fato de Almirante ter sido um dos primeiros profissionais do rádio a migrar para a televisão, quando Assis Chateaubriand (1892-1968) fundou a TV Tupi. O público presente, em sua maioria com mais de 60 anos – provando que não há idade para se aprender História –, participou cantando as músicas e trazendo um pouco de suas lembranças e experiências para os debates que faziam parte do programa.Durante as comemorações do Dia Nacional do Choro em Belo Horizonte e Ouro Preto, em abril de 2009, o grupo apresentou “Cantando e contando a história do choro”, que analisava a trajetória do gênero musical no Brasil, do século XIX até os dias de hoje. Monteiro Lobato foi o mote de outra apresentação, que celebrou o Dia Nacional do Livro. Para falar da vida do escritor, o grupo discorreu sobre sua atuação na República Velha (1889-1930), suas relações com o governo Vargas (1930-1945), a causa do petróleo e seu universo literário infantil. Muitas músicas são relacionadas a esse tema. Entre elas estão “Pauliceia desvairada – 70 anos de modernismo”, de D. Branco, Déo, Maneco e Caruso, samba-enredo da Estácio de Sá em 1992; “Brasil Pandeiro”, de Assis Valente; “Festa animada”, de Dona Ivone Lara; “Emília”, de Sérgio Ricardo; e “O mundo encantado de Monteiro Lobato”, de Darcy da Mangueira, samba-enredo da Mangueira em 1967.O História Através da Música em geral se concentra em temas mais abrangentes. Um exemplo foi a aula-show “República – Era de Heróis”, apresentada no dia 15 de novembro de 2008, no Museu da República. No evento, o público discutia como os heróis foram construídos ao longo da história da República, seja pelas elites ou pela própria população. Fossem eles militares, como Tiradentes e o duque de Caxias, políticos do naipe de Getulio Vargas e Juscelino Kubitschek, e populares, como João Cândido e Antônio Conselheiro, além dos heróis anônimos e esquecidos. Debates paralelos questionavam como cada Constituição republicana legitimou os governos instaurados e como a Constituição de 1988 marcou o fim da ditadura e permitiu que os cidadãos voltassem a ter mais participação na política, com liberdade para construir novos heróis.O público participou da apresentação de diversas maneiras. Estudantes trouxeram lições da sala de aula e dos livros didáticos para ver como os fatos eram interpretados nas letras das músicas. Isso mostrou a todos que a História não é feita de uma verdade absoluta, e sim de diversas versões que se constroem e se desfazem em função da própria dinâmica das pesquisas e dos escritos ao longo do tempo. Quando foi trabalhada a canção “Kizomba, a festa da raça” – de Luiz Carlos da Vila (1949-2008), Rodolpho de Souza e Jonas da Vila –, foram levadas em conta as diversas versões sobre a abolição da escravatura, baseadas em livros e músicas que enaltecem a princesa Isabel e outras que exaltam Zumbi como o precursor da ideia de liberdade. Dessa forma, procura-se compreender a dinâmica dos escritos históricos e sua importância na construção e desconstrução de heróis.Outro trabalho importante do grupo foi a apresentação intitulada “De Colônia a Brasil: histórias que contam História”. Na ocasião, o grupo iniciou a aula com o “Samba do Crioulo Doido”, de Stanislaw Ponte Preta – pseudônimo do jornalista Sérgio Porto (1923-1968) –, cuja letra ironiza os temas históricos abordados pelas escolas de samba. O próprio Crioulo Doido, interpretado pelo ator, apresentou o grupo e abriu o debate sobre a composição. Depois que a canção foi executada, o público foi convidado a identificar os erros históricos nela contidos.A sequência do espetáculo foi dividida em três partes. Na primeira, ficou em evidência o processo de Independência do Brasil, com referências ao mito de Tiradentes, à escravidão no Brasil, à chegada da família real em 1808, e ao modo como os compositores de sambas-enredo contribuem para a construção da memória nacional. A segunda parte da apresentação analisava os dois regimes autoritários que floresceram durante o período republicano – Estado Novo (1937-1945) e ditadura militar (1964-1985) – por meio de canções de protesto. O terceiro e último bloco foi dedicado aos movimentos populares e incluiu uma homenagem aos personagens negros da História do Brasil, com direito a um texto declamado pelo Crioulo Doido.
Arranjos para a classe
Não é necessário que um professor monte um grupo musical para reproduzir a experiência do História Através da Música na sala de aula. Há maneiras mais simples de se aproveitar o conteúdo histórico de nossa música popular. Alguns artistas possuem seus próprios sites e existem dezenas de páginas na internet com informações valiosas sobre o tema, como o do Museu da Imagem e Som, do Rio de Janeiro, e o do Instituto Moreira Salles.
A primeira coisa a fazer é selecionar músicas relacionadas ao tema a ser trabalhado. Com o repertório escolhido, o próximo passo é mostrar aos alunos um pequeno histórico dos compositores e os períodos em que as canções foram compostas. A partir dessa apresentação, é muito importante deixar que os estudantes busquem as suas próprias interpretações para as obras. Para finalizar, os estudantes devem ser incentivados a pesquisar mais sobre um determinado compositor e levar a pesquisa para a sala de aula.
Nesta atividade, a música não pode ficar restrita a um papel meramente ilustrativo. É preciso discutir a letra e até o ritmo da canção, pois esses aspectos podem levar o aluno ao conteúdo de livros e artigos previamente indicados. Analisar a diferença entre os temas tratados nos sambas ao longo do tempo e verificar como um mesmo evento é abordado em diferentes momentos podem render bons exercícios. Fica como sugestão uma comparação entre os sambas-enredo da Portela de 1957 e o da São Clemente de 2008, que falam sobre o mesmo assunto: a chegada da corte ao Brasil.Saiba Mais:
AQUINO, Rubim Santos Leão de; DIAS, Luis Sérgio. O samba-enredo visita a História do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Ciência Moderna. 2009.
MÁXIMO, João; DIDIER, Carlos. Noel Rosa – uma biografia. Brasília: Editora UNB, 1990.
NAPOLITANO, Marcos. História e Música: história cultural da música popular. Belo Horizonte: Editora Autêntica. 2002.
BITTENCOURT, Circe. Ensino da História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004.
Internet:
www.historiaatravesdamusica.wordpress.com
www.institutocravoalbin.com.br
www.samba-choro.com.br
Romney Lima é professor da rede particular de ensino do Rio de Janeiro e membro do Grupo História Através da Música
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